A medida certa da culpa

Há uma medida certa para tudo. Até para a culpa. Embora me pareça que quando ela se encontra na medida certa, ela perde seu nome e a carga subjacente, e transforma-se em responsabilidade, essa sim, ingrediente indispensável ao crescimento e amadurecimento do ser.
Essa outra senhora, a culpa , quando carregada, tem a particularidade de se entranhar até ao osso, essa parte dura que fica bem lá dentro de cada um de nós. E não o faz de forma inócua, ela corrói tudo à passagem, sem critério, aliás essa é a sua única função: a total e completa esclerose da alma.

Ela consegue, muitas vezes, sua empresa, porque ela se alimenta e busca força para crescer num dilema real e fundamental:
Haverá circunstâncias que justifiquem determinadas ações? Haverá situações que retiram completamente ao ser a possibilidade de fazer uma escolha? a possibilidade de exercício da sua Consciência?
Será aplicável a ilibação inerente à expressão: “eu não podia ter feito de outra forma.”?
Será que não podia mesmo?

É óbvio que este tipo de interrogação far-se-á presente na mente de quem já ultrapassou o hábito infantil de culpar os outros antes de si mesmo. Contudo, culpar a si não será apenas trocar o alvo?

Haverá circunstâncias ou pessoas que nos obrigam a agir de determinada forma, ao ponto de podermos nos demitir da responsabilidade inerente aos nossos atos?

Li recentemente um livro que fala sobre as vivências de um homem num campo de concentração nazi, e naquelas circunstâncias desumanas, mas iguais para todos, dois grupos se distinguiam claramente, nas palavras do autor: aqueles que se animalizaram e aqueles que preservaram apesar de tudo sua humanidade.
Neste caso, conclui-se que há na verdade sempre uma escolha a fazer, mesmo quando tudo parece ser definido pelo que é exterior a nós.

Mas se assim é, como nos libertamos então de algo que sabemos que podíamos ter feito de outra forma, apesar das mais ou menos duras circunstâncias?

Se por um lado, há quem alimente a culpa, batendo no peito com uma humildade que tresanda a orgulho, outros há que se afastam da responsabilidade das suas escolhas e ações atribuindo às circunstâncias externas ou a outras pessoas esse encargo.
Mas onde estará o equilíbrio? Qual será então a medida certa da culpa?
E mais importante, como nos libertamos dela então?

Mais pergunto: o que será pior? o que será mais estagnador no que diz respeito ao crescimento pessoal?
Resistir ao reconhecimento de uma culpa?
ou procurar incessantemente onde poderemos eventualmente ter errado?
Creio que ambas, pois ambas são fruto da mesma árvore...

A medida certa da culpa será aquela que é suficiente para nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas e ações, mas insuficiente para nos perdermos nos abismos da incompreensão e do julgamento. 

A medida certa da culpa é a necessária à aprendizagem, é um indicador da maturidade da consciência do ser, é um mecanismo que permitirá a não reincidência, que estimulará a mudança, o aperfeiçoamento e o crescimento. Deve assim ser balizada pela responsabilidade. Se ultrapassar esta barreira será destruidora, logo contra evolutiva.
Concluímos então, que esta barreira é ultrapassada, ou seja, a medida certa da culpa pode ser perdida, tanto por excesso, como por defeito.
O defeito aponta para a desresponsabilização do ser pelas suas escolhas ou pelo desacreditar do seu poder de fazê-las em consciência.
O excesso traduz-se num carregar a “pesada e faminta senhora” como um castigo merecido, típico de quem não admite para si “ter uma parte fraca”. Este excesso de culpa, ou dificuldade em libertá-la resulta assim de uma prisão que o próprio criou cujas grades se forjaram no orgulho e na recusa da sua própria imperfeição, da sua condição de ser falível e pleno de fragilidades.
A humildade é o caminho, ela abre caminho para o Perdão, que é na verdade, a única via para a dissolução da culpa.
O Perdão abre um canal no centro do ser, uma via pela qual serão libertados os conteúdos de dor.
É como abrir uma janela para arejar um quarto que cheira a bafio.

Este é um ponto fundamental num processo de alquimia profunda.(Encontrarás neste blog um artigo sobre os equívocos relativos ao significado de perdão.)

A culpa é assim uma velha senhora que não pode ser deixada no chão, pois ela irá sempre colocar-se de novo no nosso caminho, nem pode ser carregada pela vida fora, pois ela irá absorver tudo o que há de bom em nós até ficarmos mais secos do que ela mesma o é.
Essa velha senhora... deves tomá-la em teus braços, como se de um filho se tratasse, olhá-la nos olhos e reconheceres-te nela, amá-la ainda assim com todas as suas falhas e fragilidades, e vê-la transformar-se aos teus olhos, pela luz da humildade e compaixão que soubeste trazer aos teus dias, em uma bela, sábia e luminosa senhora, cujo nome é SOPHIA

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