A supressão do feminino na mulher

 Se nos situarmos no momentum da primeira grande separação, aquela que originou as duas polaridades conhecidas na tradição oriental como o yin yang, podemos compreender com relativa facilidade que se recuarmos a partir da multiplicidade de arquétipos subsequentes na direção desta separação, iremos nos deparar com uma redução a dois padrões fundamentais: a supressão do masculino ou a supressão do feminino.

No limite, todos os desequilíbrios decorrem de destes dois padrões fundamentais. Englobando todas as nuances que derivam destes dois polos, o desequilíbrio acontece sempre entre as energias masculinas e femininas, entre o hemisfério esquerdo e o direito, entre o racional e o intuitivo, entre o ativo e o passivo.

Antes de aprofundar, convém contudo ainda esclarecer o conceito de desequilíbrio.
Partindo de um ponto estável, que se refere à quantidade, ao espaço e ao tempo certos, ou seja, benéficos,
que qualquer que energia possa ter, todo desvio, no sentido da supressão, ou no sentido do exagero; por
outras palavras, no sentido do defeito ou do excesso, será sempre domínio do desequilíbrio, logo um malefício.

Tomemos como exemplo a palavra “responsabilidade”. Há uma dose certa de responsabilidade para tudo. Desequilibrar este atributo por excesso poderá ser assumir para si aquilo que não lhe pertence, responsabilizar-
se por tarefas que não são suas, por culpas alheias, numa aparente emergência de altruísmo ou síndrome do cuidador. Por outro lado, desequilibrar por defeito poderá negligenciar suas próprias responsabilidades, ceder ao medo de avançar, procrastinar, protelar iniciativas, ou até demitir-se de responsabilidades perante um dependente, etc... É importante ainda compreender que o deseq
uilíbrio numa direção, implica sempre o seu oposto. São as duas faces da mesma moeda. A verdade é que todo exagero oculta uma supressão e vice-versa. O desvio no sentido de um dos polos irá sempre implicar o seu antípoda, embora não raras vezes essa manifestação ocorra em contextos diferentes ou com pessoas diferentes. Ou seja, sempre que exageramos um atributo, iremos inevitavelmente, suprimi-lo em outra ocasião, ou em outro contexto.

Por exemplo, se um individuo se destaca por um exagero em termos comunicativos, ou seja, falar alto, por cima dos outros, interrompendo seus interlocutores constantemente, terá outro contexto na vida, ou uma questão em particular em que usa a comunicação por defeito, ou seja, não verbaliza sua verdade, cala-se. Logo, numa primeira análise, mais importante do nos debruçarmos sobre o sentido do desvio, é compreender qual é o atributo a ser reequilibrado, pois, no momento em que o desvio se instalou perdeu-se o equilíbrio que conecta ao centro, único ponto gerador de harmonia. Em primeiro lugar há que compreender que o problema, neste exemplo, está na comunicação, independentemente do sentido do desvio. Depois de identificado o atributo em desequilíbrio, a identificação do sentido para exagero ou para a supressão já será uma mais valia, na medida em que permitirá a pessoa situar-se relativamente ao ponto central que é o desejável, e será mais fácil reconhecer o padrão que evidencia de forma mais frequente.

Compreendida a noção de equilíbrio, e aplicando-a aos polos acima referidos, masculino verso feminino, como sendo os padrões originais de desvio, dos quais todos os outros derivam, vamos considerar o seguinte:
Logo desde o nascimento e ao longo do desenvolvimento da personalidade, pai e mãe ou outras figuras com esse mesmo papel são os modelos referenciais de cada uma destas polaridades, sendo que as influências recebidas por cada um deles irão definir o paradigma estrutural do ser. A acrescentar, terá também de ser tida em conta a matriz cármica, que predispõe a balança interior a pender mais para um dos polos.
Nesta medida, os perfis cármicos agrupam-se em dois grandes padrões fundamentais: a supressão do feminino e a supressão do masculino. Contudo,  nenhum dos dois, masculino e feminino, pode funcionar sem o outro, e para que a vida aconteça é necessária a interceção destes dois polos.
Naturalmente, os desequilíbrios decorrentes do padrão da supressão do feminino serão resultado da dificuldade em aceder aos atributos inerentes ao princípio feminino, como a intuição, a mente subjetiva, a criatividade, o saber receber, a nutrição. Contrariamente, os desequilíbrios decorrentes do padrão da supressão do masculino serão decorrentes da dificuldade em aceder aos atributos inerentes ao princípio masculino, como a lógica racional, o foco, a capacidade de ação e a força de vontade, a realização material. Invariavelmente, o tratamento das causas destas supressões, que ceifam a possibilidade de uma vida em plenitude, levam-nos à necessidade de trabalhar em campos que, muitas vezes, ultrapassam a vivência atual. O que somos hoje, é na verdade, o resultado de tudo o que fomos até então!
Seguir este caminho do meio num mundo formatado no princípio da dualidade é, sem dúvida, um desafio, mas é a única via que promove verdadeiramente o reencontro com a harmonia que é morada interna de cada um: fundindo as polaridades para reencontrar a unidade que é a essência harmoniosa de cada ser.

Para a compreensão mais profunda deste tema impõe-se esclarecer a diferenciação entre masculino e feminino e homem e mulher. Independentemente do género, há um equilíbrio ideal entre estes dois princípios, tanto no homem como na mulher. Os animus e anima de Jung.
Um homem tem, assim, aspetos femininos, assim como a mulher tem masculinos, e no ideal, ambas estas energias devem conviver harmoniosamente em cada ser, independentemente do género.
O padrão da supressão do feminino na mulher aplica-se à mulher cujas atitudes, comportamentos, ações e reações, somatização físicas e até, em casos extremados, constituição e/ou aparência físicas tendem a afastar-se das características típicas do princípio feminino. Consequentemente essa mulher tenderá a pautar-se mais por características inerentes ao masculino, o que se tornará verificável em várias dimensões do ser: desde do físico, passando pelo perfil emocional/mental até ao nível da consciência.

A emancipação feminina
Este perfil é muito comum nos dias de hoje e resulta, em termos sociais, de um processo de emancipação, iniciado, em massa, na década de sessenta. Contudo, se observarmos com alguma atenção será fácil verificar que este processo de emancipação do género feminino levou mais à supressão da energia feminina do que à celebração da mesma.
Nasceu assim uma mulher mais ativa, eficiente, independente, positivamente emancipada no que diz respeito ao comando da sua própria vida, mas por outro lado também uma mulher cada vez mais afastadas da maternidade, ou com rejeição à mesma, mais desligada da intuição e afetuosidade que caracteriza o género. Uma mulher cada vez menos identificada com o princípio feminino que se associa ao hemisfério direito do cérebro e se liga à criatividade, à intuição e à quietude que acolhe a germinação das coisas.
A acrescentar às influências sociais já referidas que contribuem para a formatação desse perfil, há que considerar outras causas que dizem respeito ao universo individual de cada ser. Aí, na história pessoal é que foram efetivamente definidas as formas dessa mulher.
Considere-se neste ponto as vivências do passado e os registos que são resultado da sua jornada definindo sua matriz cármica. Estas memórias irão predispor o ser para determinado perfil.
O padrão de supressão do feminino na mulher ocorre por conta de vivências do passado marcadas por um padrão ao qual chamamos de “carência de pai”. Considere-se que este padrão ocorre e é verificável na infância, como em memórias de vidas passadas e caracteriza-se por um desvio, por defeito, da energia masculina perante o sujeito em causa.
O desvio por defeito será todo tipo e padrão de comportamento tido pelo “pai” que se desvie da harmonia de um contacto equilibrado e saudável.

A carência de “pai” ou energia masculina poderá acontecer de diversas formas, tais como:
• ausência de afetos ou distanciamento emocional do pai,
• ausência de facto por morte ou abandono,
• convivência com um pai com energia masculina pouco desenvolvida,
• por violência por parte do pai,
• abusos por parte do pai

Vamos compreender que o “pai” aqui pode ser substituído por qualquer outra figura masculina que tenha um impacto significativo na vida da mulher em causa.
Entende-se também que o padrão tem graus muito variáveis, como o serão, naturalmente, suas consequências.
Diferente será o padrão de uma mulher que viveu falta de afeto do pai, do que outra vítima de violência. Note-se que quanto maior o grau de “carência de pai”, maior o grau de supressão do feminino.
Este tipo de cenário vai levar a criança, em forma reativa, a desenvolver em si os atributos que sente ter por defeito por não estar a receber da parte do modelo “pai” a “quantidade” ou “qualidade” adequada. Assim, começa a formatar-se a personalidade tipo do padrão da supressão do feminino: a mulher que se esforça por ser ativa e independente, mas cai frequentemente no padrão do mártir.

Neste caso, em que há supressão do feminino, esse perfil tenderá a direcionar a mulher para a polaridade oposta, evidenciando os aspetos masculinos, como a prevalência da lógica racional, o rigor exacerbado, a impulsividade ou inquietude e vontade de independência e a sensação de ter de estar sempre a lutar, e de que só com muito esforço se conseguem as coisas, em detrimento dos femininos, como a quietude, a intuição, a mente subjetiva, a criatividade, o saber receber, a confiança e a fé.
Numa abordagem cármica mais profunda, verifica-se que este tipo de padrão específico resulta invariavelmente de sucessivas vivências pautadas pela rejeição, perseguição, humilhação ou exploração da mulher pelo homem em contextos diversos, mas reiterando sempre a opressão sofrida.
Estas vivências resultam em feridas emocionais profundas e cristalizam na memória celular a crença errónea de que ser feminina é ser menor, é sofrer mais, é difícil, é dor, é ser submissa, é, em última análise ser a sombra e não a luz. Assim começa a supressão, daquilo que se considera menor ou trouxe dor acrescida.
As consequências variam na sua forma e têm muitas nuances: pois cada ser lida com vivências semelhantes de maneira deferente. Pode-se contudo estabelecer duas formas opostas de reação:
1- um profundo ressentimento/revolta relativamente ao género masculino e à supremacia do mesmo, reconhecidos e vividos mais ou menos abertamente.
2- um protecionismo e desculpabilização dos homens, por serem aqueles que representam o “prémio a atingir”.
No primeiro caso, haverá dificuldades no relacionamento afetivo e uma tendência à competição e busca desenfreada e prematura de independência, estimulada pela revolta contida nas memórias conscientes ou inconscientes de agressões e humilhações outrora sofridas. Esta mulher fará tudo para nunca depender de nada nem ninguém, principalmente de um homem. Esta necessidade de emancipação far-se-á notar desde cedo na relação com a figura paternal. Grande parte da sua vida será uma luta constante, sempre na ação, nunca na entrega e rendição, pois o medo que advém da crença na sua própria fragilidade não lhe dá abertura para “baixar as armas”. Até se esquecer de ser mulher e transformar-se cada vez mais naquele que sente como seu inimigo, mas deseja ao mesmo tempo. Acrescente-se ainda, que na verdade essa tentativa de igualar seu opressor será uma empresa de esforço, que na verdade, só tornará mais evidentes as dificuldades e a crença de falta de recursos internos no domínio da energia masculina. O desenvolvimento de características masculinas já referidas são superficiais e mais aparentes que consolidadas, pois são na verdade uma forma de “disfarçar” as lacunas que intimamente acredita ter. E essas, no final das contas, dizem respeito a características masculinas, traduzidas no sucesso das realizações na matéria.
Ainda sobre as formas de reação, enquanto no primeiro caso há uma revolta contra a supremacia masculina, pela recusa dessa realidade em sua vida, no segundo à uma rendição, pelo facto de, mesmo que inconscientemente, acreditar nisso: há em si a crença de que a supremacia masculina é algo incontornável. Neste caso, dependendo do grau de intensidade, os conflitos abertos e reconhecidos pelo consciente serão tendencialmente com mulheres, pois o homem é algo a proteger, de uma certa forma intocável. A revolta, neste caso, surda e abafada, deste desequilíbrio será projetado em outras mulheres. Talvez a mãe, uma irmã ou uma colega de trabalho, pelo fenómeno espelho que estas proporcionam, sendo que o verdadeiro conflito, camuflado nas camadas mais inconscientes, é efetivamente com os homens que são, na verdade, portadores da energia que a mulher acredita, mesmo que inconscientemente, ter por defeito. E é essa crença que a leva a inconscientemente proteger e desculpabilizar os homens.

Evoluindo para além dos padrões de supressão: Androginia da Consciência

Considerando que o caminho evolutivo nos direciona no sentido de um equilíbrio entre as polaridades, no sentido de uma consciência andrógina, e tendo em conta que quanto mais próximo estiver desse ponto mais equilibrado estará, logo mais feliz, mais saudável e realizado, interessa compreender que atributos estão a ser manifestados por excesso ou por defeito, para que se possa estabelecer um ponto de estabilização, que foi já chamado de “caminho do meio”.
A consciência andrógina é assim aquela que se eleva acima do paradigma da dualidade inerente à polarização da realidade.
É fundamental a consciencialização dos desvios, identificados de forma consciente em condutas do dia-a-dia, atitudes e traços de personalidade, para, pelo exercício da vontade, mudar. Mudar é agir diferente. Só assim se constrói, passo a passo, em pequenas coisas, a verdadeira e grande mudança que se quer interior.
A sabedoria do ser de consciência andrógina reside na capacidade de usar com inteligência emocional as qualidades femininas e masculinas de forma adequada e de acordo com o solicitado em cada situação de vida. Saber quando é tempo de agir, ser ativo; saber quando é tempo de parar, ser passivo. Saber quando é tempo de partir à conquista; saber quando é tempo de permitir receber.
Saber quando é preciso pensar, raciocinar; saber quando é preciso “ouvir” a intuição com a mente livre de pensamentos.
Saber quando é tempo de pensar; saber quando é tempo de sentir. Saber quando usar a mente; saber quando usar o coração. Na verdade, aprender a fundir estas duas, na simultaneidade da sua ação. Neste equilíbrio, a alma emancipa-se da existência polarizada e transcende as dualidades que a prendiam à roda de samsara.


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