Perdão - O grande equívoco.

 Muitas vezes evocado como ponto chave de processos terapêuticos, o perdão, tem sido visto por uma lente que distorce o que há de mais fundamental na sua essência.

Essa lente inverte o movimento que se quer de unificação, pelo reconhecimento de parte de si espelhada no outro, para um movimento de separação, hierarquização, pelo posicionamento que se passa a ocupar no momento do “dito perdão”.

Esta hierarquização tem por base um julgamento, e esse julgamento distorce a ótica dos envolvidos, colocando-os num terreno estratificado, onde um se colocará sempre numa perspetiva de julgamento do outro, perdendo o acesso à terceira visão que permite a cada um olhar para si mesmo.

Nos tribunais desta vida, onde ocorrem todos esses julgamentos, sabemos todos que há dois, e apenas dois, resultados possíveis: a condenação ou a absolvição do réu.

Nesses tribunais edificados pela nossa mente, em que o juiz é esse soberano e poderoso Ego, analisamos ocorrências, verificamos factos, inquirimos testemunhas e confrontamos o réu. Armamo-nos com a imponente, mas oca balança de uma justiça menor, e colocamo-nos na mais alta posição que nossos bicos de pés permitem, legitimados pelo autoproclamado título de vítima e dissertamos sobre as razões e os porquês da nossa soberana decisão.

E como nossos pés e nossas pernas nunca nos elevam à posição que gostaríamos… parecem sempre curtos demais… batemos com o martelo, para que todos saibam e nos ouçam. Mas as reverberações daquele estrondo, apenas tornam mais evidente a caixa vazia que se tornou o coração em todo este processo.

No caso da sentença ser a condenação, a distância entre julgador e julgado é ainda tão grande que será necessário o cumprimento da “pena”, para que de novo, se tente mais à frente, quando as emoções ficarem mais brandas.

E aqui está aquilo que comumente se relaciona com o não perdão.

No caso da absolvição, a hierarquização implícita apenas transforma a distância horizontal entre julgador e condenado, para uma distância vertical, entre julgador e absolvido. Continuam ambos longe do reconhecimento da sua própria humanidade no outro.

Na verdade, a absolvição decorre do facto de se ter considerado atenuantes ao “crime”.

Essas são tantas vezes ouvidas por aí: “ele/a fez-me isto, mas também lhe fizeram o mesmo no passado”, “ele/a não sabia mais, fez o que sabia”, “as circunstâncias eram difíceis”, “os tempos eram outros”, etc.. e aí, vem a ilusão de perdão.

E é aqui que está o grande equívoco. Confunde-se Perdão com absolvição, ignorando o facto de que tanto a absolvição como a condenação são resultados de um julgamento. Para absolver, precisei julgar primeiro, se julguei, não perdoei.

A Absolvição parece mais aceitável, mas pode ter o efeito perverso da atenuação ou ocultação dos sintomas, que remetem para profundezas cada vez mais inacessíveis as reais causas da doença.

Estar iludido por artifícios mentais de que perdoamos pode ser pior do que reconhecer conscientemente que tal não aconteceu. As emoções inerentes ao sucedido, à relação com alguém estão lá, a mágoa permanece, contudo é remetida para uma subcamada, que só se consegue escapar de novo para o nível consciente em situações gatilho. E é aí mesmo que compreendemos, se houver honestidade, que o perdão está longe de estar feito.

Pois, efetivamente, não pode estar, pois o caminho tomado não conduz a ele, pois seu ponto de partida foi um julgamento.

Na verdade, perdoar é precisamente libertar-se desse fardo que é o julgamento. É compreender que não é esse o nosso papel, pois seria como um juiz, do alto da sua tribuna a julgar um processo onde ele próprio foi vítima ou réu. E é certo que ninguém pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo e a posição de juiz ou julgador para aspirar a uma aproximação de Justiça terá sempre como condição sinequanone a isenção, imparcialidade e neutralidade. Lugares impossíveis para quem fez parte do processo.

Perdoar nada tem a ver com julgar, nem com nada que daí decorre. Perdoar implica um movimento de unificação e ao mesmo tempo de libertação.

Todo o perdão aparentemente feito em relação ao outro, se for verdadeiro, é na realidade um auto-perdão, pois só nos libertamos de julgar algo exterior a nós quando esse algo é EFETIVAMENTE exterior, ou seja, quando já não há reflexo dentro de nós desse mesmo algo.

Quando assim é, quando dentro de nós, nada de semelhante àquilo que nos foi feito encontra espaço, há apenas uma não identificação, que acontece como consequência da libertação ocorrida quando aquela característica específica foi neutralizada em nós. O espelho perdeu a sua carga energética, pois já corrigiste esse desvio em ti.

Quando ainda vibra, quando a dor permanece, quando nos sentimos atingidos por algo que vem de fora, o olhar deve virar-se para dentro, auscultando o que nos é mostrado de fora, pois sofreremos sempre do golpe de uma espada, empunhada por outros, que em primeira instância, nós próprios forjamos.

Quando compreendemos este ponto fundamental, libertamo-nos do peso do julgamento, pois aquilo que o outro fez, a ele pertence. Do lado de cá, importa só aquilo que a nós pertence.

E é a sensação que tens no peito que te dirá, quando teu pensamento visitar um evento, ou essa outra pessoa, se há ainda algo de TI que pede por Perdão.

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